O Direito de Permanência na Escola
Valéria Teixeira de Meiroz Grilo
e
Sylvio Roberto Degasperi Kuhlmann
Promotores de Justiça no Estado do Paraná
Sylvio Roberto Degasperi Kuhlmann
Promotores de Justiça no Estado do Paraná
1. INTRODUÇÃO
Entre 24 de janeiro de 1967 e 05 de outubro de
1988, a República Federativa do Brasil viveu sob a vigência de uma ordem
constitucional que dedicava à educação, em especial, três artigos.
O dispositivo-chave (art. 176) preceituava, em
seu caput, que "A educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos
ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do
Estado, e será dada no lar e na escola."
Tratou a Constituição revogada de declarar a
unidade nacional como único princípio educacional. A liberdade e a solidariedade
humana convém se observar foram tratadas apenas como ideais inspiradores da
educação. Contudo, não se pode olvidar que a educação já correspondia a um
direito de todos.
Sob a influência de um regime notoriamente
autoritário, a educação nacional viveu, também, o seu tempo de exclusões.
Assistiu-se em todos os recantos do país à depuração ideológica das instituições
escolares. Professores foram sumariamente demitidos. Alunos foram
sistematicamente perseguidos e expulsos, notadamente nas instituições de ensino
superior.
Ao dever de preservação da unidade nacional,
correspondia o direito da instituição escolar em tutelar a integridade de seus
ambientes. Sob o argumento nem sempre claro ou até mesmo comprovado da
indisciplina, da falta grave, do comportamento inadequado, presenciaram-se
punições "exemplares" de alunos e até mesmo de professores, formando- se, assim,
ao lado dos merecedores do ensino, a "classe dos fora da escola".
Por este e outros motivos que desgraçaram o
sistema educacional (e de saúde, segurança, habitação, etc.), foi preciso que o
país refletisse sobre a necessidade de elaboração de uma nova ordem
constitucional, que respeitasse, acima de tudo, as exigências e a diversidade da
pessoa e a pluralidade das manifestações humanas. Conforme asseverou Ulysses
Guimarães, a Constituição de 1988, "Diferentemente das sete constituições
anteriores, começa com o homem. Graficamente testemunha a primazia do homem, que
foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a
constituição cidadã. [...] "O homem é o problema da sociedade brasileira: sem
salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto sem cidadania." (Anais da
Assembléia Nacional Constituinte, Centro Gráfico do Senado Federal, Brasília-DF,
1988).
Marcada por este raciocínio, a Constituição
Federal de 1988 elencou, dentre os seus princípios fundamentais e como alicerce
do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana e a cidadania
(art. 1º., II, e III). Determinou, também, como um dos seus objetivos
fundamentais (e não mais como mero ideal), a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária.
São estas, portanto, as bases que devem orientar
a interpretação do texto constitucional e da legislação infraconstitucional
relativa à educação.
2.
Além da família, são as instituições educativas
fundamentais na complementação do desenvolvimento pessoal e social das crianças
e dos adolescentes. O processo democrático e o exercício da cidadania pressupõem
a universalização da educação básica. Isto significa possibilitar a todos o
acesso aos conhecimentos acumulados pela humanidade, estimulando que cada um
seja produtor desse conhecimento. A educação permeia a relação entre os homens e
todo o conhecimento científico deve estar a serviço do bem-estar social,
contribuindo decisivamente para a melhoria das condições de cada cidadão.
O acesso e a freqüência com sucesso a uma
instituição educativa significa, além do aprendizado dos conteúdos formais, a
aquisição de sociabilidade e o exercício da cidadania. As condições para a
construção de uma sociedade democrática, com justiça social, dependem da
universalização do ensino básico com qualidade, mantendo-se todos,
principalmente crianças e adolescentes, nos bancos escolares.
Busca-se, através da Constituição Federal e do
Estatuto da Criança e do Adolescente, a garantia do direito à educação.
Prescreve o art. 205 da Constituição Federal: "A
educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho."
A Constituição Federal de 1988 confiou à
educação, portanto, a importante missão de formação da pessoa, preparando-a para
o exercício da cidadania e sua inserção no mercado de trabalho. Com idêntica
disposição, o legislador editou o Estatuto da Criança e do Adolescente em 13 de
julho de 1990 (Lei nº. 8.069, art. 53, caput).
Como se observa, o constituinte de 1988 não
tratou a educação como um fim em si mesmo, ou mero aparato de enriquecimento
cultural, mas um verdadeiro caminho, instrumento ou meio de construção de uma
sociedade que se pretende justa, livre e solidária.
Estabeleceu a Constituição, ainda, princípios que
devem conduzir o ensino. Interessa destacar, para a presente reflexão, o
primeiro princípio arrolado, isto é, o contido no inciso I do art. 206, in
verbis:
"I igualdade de condições para
o acesso e permanência na escola."
O princípio foi, também, regrado
infraconstitucionalmente, no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente,
especificamente no art. 53, caput (in fine), o qual preceitua que é assegurada a
toda criança e adolescente a igualdade de condições para o acesso e permanência
na escola.
O direito à educação teria pouca ou nenhuma valia
se não houvesse, por parte do legislador, a sensibilidade de cercá-lo de
efetividade. Daí ter-se garantido, ou assegurado, o acesso e a permanência na
escola, que podem ser perfeitamente identificados como expressões do direito
constitucional à educação.
Firmadas estas considerações, cabe agora analisar
os reflexos da garantia de acesso e permanência na escola sob a ótica da relação
escola-aluno.
3.
A garantia de acesso e de permanência significa
que todos têm direito de ingressar na escola, sem distinção de qualquer
natureza, não podendo ser obstada a permanência de quem teve acesso.
O acesso não pode ser impedido a qualquer criança
ou adolescente. Todos possuem o direito à matrícula em escola pública ou
particular. Existindo a recusa em razão de preconceito de raça, caracteriza-se,
neste caso, uma infração penal. O artigo 6º. da Lei nº. 7716/89 tipifica como
crime recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em
estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau, cominando ao
comportamento uma pena de privação de liberdade de três a cinco anos.
A garantia de permanência significa que não se
admite a exclusão da escola do aluno indisciplinado, do portador do vírus HIV,
dos portadores de deficiência, etc.
A questão da manutenção de crianças e
adolescentes na entidade escolar é um grande desafio. Normalmente são vítimas de
fatores de segregação pedagógica os mais pobres e os menos favorecidos
intelectualmente.
Estando tutelado o direito de permanência, é
corolário lógico a proibição das transferências compulsórias ou expulsões, por
ato unilateral da escola.
A escola representa, após a família, também um
núcleo comunitário a ser freqüentado pela pessoa, local em que a criança e o
adolescente estabelecem suas primeiras relações de companheirismo, amizade,
desentendimentos, sexualidade, amor, cólera.
Como não poderia deixar de ser, do entrechoque
dos valores individualmente absorvidos e dos valores que regram a vida em grupo,
surge, quase que necessariamente, uma relação que se pode classificar de
conflituosa entre o aluno e a escola.
O aluno traz e cria problemas na escola. Há os
que são mais facilmente adaptados às regras de comportamento escolar, outros nem
sempre e, alguns em casos extremos nunca conseguem atingir níveis satisfatórios
de disciplina. Existem, pois, comumente: alunos comportados, alunos
indisciplinados e "alunos-problemas".
Para a administração da relação aluno-escola, é
imperioso que haja um conjunto de regras que estabeleçam direitos e deveres dos
educandos, os atos de indisciplina, o procedimento de apuração dos mesmos e as
sanções aplicáveis (a propósito, vide a Deliberação nº. 20/91 do Conselho
Estadual de Educação do Estado do Paraná, que estabelece normas para a
elaboração de regimentos escolares dos estabelecimentos de ensino de 1º. e 2º.
graus, do sistema estadual de ensino do Paraná).
Os regimentos escolares devem, evidentemente,
observar o ordenamento jurídico, sob pena de incorrerem em ilegalidades. Bem por
isso, cuidou o artigo 11 da sobredita Resolução do Conselho Estadual de Educação
em advertir que: "O Regimento Escolar disporá sobre os direitos e deveres dos
protagonistas da comunidade escolar, em consonância com os princípios
constitucionais, em especial, o contido no art. 206 da Constituição da República
Federativa do Brasil, no art. 178 da Constituição do Estado do Paraná, no art.
3º. desta Deliberação, bem como com a legislação pertinente".
Também e especificamente no tocante ao direito de
acesso e permanência, dispõe o artigo 13 da citada Resolução que: "Aos
estudantes será assegurado o princípio constitucional de igualdade de condições
para acesso e permanência na escola."
Neste compasso de ponderações, uma pergunta se
impõe, qual seja: pode a escola, face ao ordenamento jurídico, prever em seu
regimento sanções de exclusão do aluno, ou mais especificamente, a expulsão e/ou
a transferência compulsória?
Temos que a resposta, como já alhures mencionado,
há de ser indubitável e contundentemente negativa.
Anote-se que a transferência compulsória nada
mais é do que a própria expulsão do aluno da instituição escolar, posto que,
apesar da denominação diferente, seu conteúdo não distingue os mesmos efeitos,
isto é, a exclusão do educando. Trata-se de um disfarce semântico.
Como antes visto, são asseguradas, legalmente,
igualdade de condições não apenas para o acesso, mas, também, para a permanência
na escola. Conseqüentemente, todos os alunos de uma mesma instituição escolar
devem se sujeitar às regras uniformemente estabelecidas, devendo ser igualmente
punidos pelo cometimento de atos de indisciplina.
Mas a punição máxima de exclusão da escola
implica na criação de uma condição não autorizada por Lei, isto é, a condição de
criança expulsa ou transferida compulsoriamente.
Colocada esta assertiva, uma série de indagações
podem, naturalmente, vir à luz, isto é: qual atitude pode a escola adotar em
caso de cometimento pelo aluno de um crime ou de uma contravenção penal? A
escola fica a descoberto quando um aluno agride, injuria, lesa corporalmente ou
até mesmo mata um outro aluno ou professor? E se trafica ou usa substâncias
entorpecentes dentro da escola? Como contornar o problema do indisciplinado
multirreincidente? A escola não pode expulsar ou transferir
compulsoriamente?
Enfim, são inúmeras as questões acerca do que
pode ser imposto ao aluno, como penalidade, sem se infringir o Estatuto da
Criança e do Adolescente e a Constituição Federal.
Tem-se, equivocadamente, a idéia de que se veda a
imposição de disciplina e limites aos alunos. Outrossim, erroneamente se propala
que o Estatuto da Criança e do Adolescente apenas concedeu direitos e não foram
impostos deveres aos menores de dezoito anos.
Nada disso corresponde à verdade. O Estatuto
apenas veda o autoritarismo, mas não subtrai dos educadores, em nenhuma
circunstância, a possibilidade de exercício da autoridade. Aliás, frise-se, é
direito das pessoas em formação receber os limites necessários para torná-las
aptas à vida em sociedade. Com estes dados, é perfeitamente compreensível o que
significa desrespeito aos direitos dos alunos.
Em relação à matéria de comportamento
disciplinar, é certo que os regimentos das escolas devem estabelecer a previsão
do que significa ato de indisciplina, enquanto infração aos deveres e às normas
expressas pela regulamentação interna da escola, dispondo sobre as penalidades
possíveis de serem aplicadas pelo professor, pelo diretor, pelo conselho escolar
ou por comissão disciplinar composta em cada unidade escolar.
É oportuno, também, estabelecer uma diferenciação
entre ato de indisciplina e ato infracional. Ato infracional é todo aquele que
se caracterize como conduta prevista como crime ou contravenção na legislação
penal, e ato de indisciplina corresponde ao comportamento que, embora não
constitua crime ou contravenção penal, comprometa a convivência democrática e
ordeira do ambiente escolar.
Em se verificando uma ação que seja tipificada
como crime ou contravenção por um aluno nos limites internos de uma escola,
devem os responsáveis pela instituição comunicar às autoridades competentes,
permitindo a devida apuração do ato infracional.
Havendo a prática de ato infracional por pessoa
menor de doze anos (definida como criança no Estatuto da Criança e do
Adolescente) o caso deve ser encaminhado ao Conselho Tutelar do município e, na
falta deste órgão, ao Juizado da Infância e da Juventude, desencadeando-se
procedimento para aplicação de medidas de proteção. Caso o autor do ato
infracional seja maior de doze anos e menor de dezoito (pessoa adolescente,
segundo o Estatuto) a questão há de ser encaminhada à Delegacia Especializada ou
ao Promotor de Justiça, permitindo-se a instauração do procedimento destinado à
apuração do ato infracional, do qual poderá resultar aplicação de medida
sócio-educativa.
A lei não quer e nem autoriza que a escola faça
as vezes ou se substitua à Autoridade Policial, ao Promotor de Justiça, ao Juiz
da Infância e da Juventude ou ao Conselheiro Tutelar. A escola não detém a
atribuição de apurar os atos infracionais eventualmente cometidos por seus
alunos e, muito menos, de aplicar, em nome do Estado, as medidas cabíveis.
Acrescente-se, ainda em relação aos atos
infracionais, que a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do
Adolescente não previram a suspensão da continuidade dos estudos nem mesmo
quando o adolescente recebe medidas sócio-educativas de restrição ou privação de
liberdade, pois lhe é garantido o direito de receber escolarização.
Na hipótese de não se verificar um ato
infracional, mas apenas ato de indisciplina, convém se lembrar, antes e
sobretudo, que o aluno é titular do direito fundamental à educação, com respeito
à inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, tendo obrigação de
cumprir determinados deveres, que, se violados, podem ensejar a aplicação de
medida disciplinar pela escola.
Isto posto, sugere-se, a seguir, um regime quanto
à disciplina e aplicação de penalidades no âmbito da escola.
4.
É recomendável que se crie, inicialmente, uma
hierarquia para a aplicação de penalidades. As menos gravosas e destinadas aos
casos de somenos importância podem ser aplicadas pelo professor ou diretor e, as
mais gravosas, exigem a intervenção de um colegiado.
Ao professor, faculta-se a aplicação de uma
advertência verbal a "chamada de atenção na sala de aula" incluindo-se aqui o
esclarecimento quanto à impossibilidade de o professor submeter a criança ou
adolescente a vexame ou constrangimento na aplicação da penalidade.
Crescendo em gravidade, tem-se, em seguida, a
advertência verbal e reservada e, após, a advertência escrita, no caso de
reincidência, com comunicação aos pais ou responsável.
Ao diretor compete a aplicação das medidas de
advertência escrita, com comunicação escrita aos pais ou na presença dos mesmos,
com lavratura de termo de compromisso de colaboração à melhoria da conduta do
educando.
Os casos mais graves ou de multirreincidência
deverão ser encaminhados à supervisão de ensino ou à orientação educacional.
As penalidades impostas pelo professor ou pela
direção podem ser revistas pelo colegiado, a pedido do interessado.
No que tange às penalidades aplicadas pelo
Conselho Escolar ou pela comissão de disciplina (colegiado), cabíveis para os
casos mais graves e de multirreincidência, incluem- se: a advertência; a
suspensão da freqüência às atividades da classe, por período determinado; a
reparação do dano causado involuntariamente ao patrimônio público ou particular;
a retratação verbal ou escrita; a mudança de turma e a mudança de turno.
A suspensão, vedada no período de provas, não
pode implicar em prejuízo ao aprendizado escolar ou, evidentemente, em violação
ao direito à educação. Assim, deve o aluno ser retirado da classe, mas
mantendo-se-o em local apropriado (biblioteca, por exemplo), onde desenvolverá
atividades semelhantes às que estiverem sendo ministradas na sala de aula,
preferencialmente pesquisas e redações, as quais serão objeto de análise
subseqüente pelo professor para efeito de avaliação do rendimento escolar.
Acrescente-se que a suspensão pura e simples, além de violar o direito à
educação, vem a conferir ao aluno um indesejado prêmio pelo ato de
indisciplina.
A reparação do dano em caso de involuntariedade é
da esfera do Conselho ou comissão. Os danos causados voluntariamente constituem
ato infracional e devem ser encaminhados ao Conselho Tutelar ou Autoridade
Judiciária ou Policial, dependendo da idade do autor.
A retratação verbal ou escrita destina-se aos
casos de ofensa à honra de colegas de classe, educadores e funcionários.
A mudança de turma, segundo informações dos
profissionais da área da educação, muitas vezes regulariza a disciplina do
aluno.
A mudança de turno, finalmente, é a penalidade
mais gravosa, devendo ser condicionada a sua aplicação à ausência de prejuízo
quanto ao trabalho do adolescente.
Importa ressaltar que uma escola não representa,
apenas, um espaço físico. A escola é uma extensão do corpo social e reproduz,
por isso, suas mazelas e virtudes, que são, em última análise, as qualidades e
defeitos do próprio ser humano. Pretende o ordenamento jurídico que a escola
também aprenda, cresça e se habilite a conviver com os desafios trazidos para
seu interior.
Procure se imaginar, no âmbito de um condomínio
de moradores, a possibilidade de se decretar a exclusão das crianças e
adolescentes indisciplinados. Se nem mesmo em uma entidade desta (com natureza e
fins exclusivamente privados) tanto não se faz possível, mais absurdo seria
admiti-los na escola, local de exercício do direito constitucional à
educação.
Alunos comportados, indisciplinados e "problemas"
merecem, pois, tratamento igualitário. Igualdade de condições (direitos, deveres
e sanções) que devem estar inscritas no regimento escolar, mas que possibilitem
sempre a permanência do educando na instituição escolar.
É esta, pois, a garantia legal e expressão de um
direito maior o direito à educação.
