O ato de indisciplina: como proceder
Murillo José Digiácomo
Promotor de Justiça no Estado do Paraná
Promotor de Justiça no Estado do Paraná
Em encontros realizados com professores, é comum
o questionamento sobre como proceder em relação a alunos - notadamente crianças
e adolescentes, que praticam atos de indisciplina na escola, assim entendidas
aquelas condutas que, apesar de não caracterizarem crime ou contravenção penal
[nota 1], de qualquer modo tumultuam ou subvertem
a ordem em sala de aula e/ou na escola.
Tais questionamentos não raro vêm acompanhados de
críticas ao Estatuto da Criança e do Adolescente que teria, supostamente,
retirado a autoridade dos professores em relação a seus alunos, impedindo a
tomada de qualquer medida de caráter disciplinar para coibir abusos por estes
praticados.
Ledo engano.
Em primeiro lugar, importante registrar que o
Estatuto da Criança e do Adolescente, ao contrário do que pensam alguns,
procurou apenas reforçar a idéia de que crianças e adolescentes também
são sujeitos de direitos como todo cidadão, no mais puro espírito do contido no
art.5º, inciso I da Constituição Federal, que estabelece a igualdade de
homens e mulheres, independentemente de sua idade, em direitos e
obrigações.
Sendo crianças e adolescentes sujeitos dos
mesmos direitos que os adultos, a exemplo destes possuem também
deveres, podendo-se dizer que o primeiro deles corresponde justamente ao
dever de respeitar os direitos de seu próximo (seja ele criança,
adolescente ou adulto), que são exatamente iguais aos seus.
Em outras palavras, o Estatuto da Criança e do
Adolescente não confere qualquer "imunidade" a crianças e adolescentes, que de
modo algum estão autorizados, a livremente, violar direitos de outros cidadãos,
até porque se existisse tal regra na legislação ordinária, seria ela inválida
(ou mesmo considerada inexistente), por afronta à Constituição Federal,
que como vimos estabelece a igualdade de todos em direitos e
deveres.
No que concerne ao relacionamento
professor-aluno, mais precisamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi
extremamente conciso, tendo de maneira expressa apenas estabelecido que crianças
e adolescentes têm o "direito de ser respeitados por seus
educadores" (art.53, inciso II, verbis).
Essa regra, por vezes contestada e, acima de
tudo, mal interpretada, sequer precisaria ter sido escrita estivéssemos em um
país do chamado "primeiro mundo" [nota 2], haja
vista que o direito ao respeito é um direito natural de todo
ser humano, independentemente de sua idade, sexo, raça e condição social ou
nacionalidade, sendo que no caso específico do Brasil é ainda garantido em
diversas passagens da Constituição Federal, que coloca (ou ao menos objetiva
colocar) qualquer um de nós a salvo de abusos cometidos por outras pessoas e
mesmo pelas autoridades públicas constituídas.
Seu objetivo é apenas reforçar a idéia de
que crianças e adolescentes, na condição de cidadãos, precisam ser
respeitados em especial por aqueles encarregados da nobre missão de educá-los,
educação essa que obviamente não deve se restringir aos conteúdos curriculares
mas sim atingir toda amplitude do art.205 da Constituição Federal, notadamente
no sentido do "...pleno desenvolvimento da pessoa..." da criança
ou adolescente e seu "...preparo para o exercício da cidadania..."
(verbis), tendo sempre em mente que, no trato com crianças e adolescentes
devemos considerar sua "...condição peculiar..." de
"...pessoas em desenvolvimento..." (art.6º da Lei nº 8.069/90 -
verbis).
O dispositivo em questão, portanto, de modo algum
pode ser interpretado como uma espécie de "autorização" para que crianças e
adolescentes de qualquer modo venham a faltar com o respeito a seus educadores
(ou com qualquer outra pessoa), pois o direito ao respeito e à integridade
física, moral e psíquica destes é garantido por norma Constitucional, de
nível portanto superior, que como vimos não poderia jamais ser violada
por uma lei ordinária.
Feitas estas ponderações, que me pareciam
pertinentes para o início da exposição, a resposta sobre o que fazer
quando da prática de um ato de indisciplina por parte de um aluno, seja ele
criança, adolescente ou adulto, passa por uma análise conjunta da Constituição
Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei de Diretrizes e Bases da
Educação e, é claro, do regimento escolar do estabelecimento de ensino, devendo
este último por óbvio se adequar às disposições legais e constitucionais
específicas ou de qualquer modo afetas à matéria que pretende regular.
Como impossível saber o conteúdo e forma de
elaboração de cada regimento escolar, parto do princípio que este, além de
respeitar as normas acima referidas, foi elaborado e/ou adequado a partir de uma
ampla discussão com toda a comunidade escolar, em especial junto
aos pais dos alunos, que nos termos do art.53, par. único do Estatuto da Criança
e do Adolescente, têm direito não apenas a tomar conhecimento do processo
pedagógico da escola (pública ou particular), mas também de participar
diretamente da própria definição de suas propostas educacionais.
E no contexto do que deve ser entendida como
"proposta educacional" da escola, por óbvio, deve estar incluída a forma de
lidar com autores de atos de indisciplina, pois são estes seguramente
indiciários de falhas no processo educacional do aluno que precisam ser melhor
apuradas e supridas através de ações conjuntas da escola, da
família e, eventualmente, mesmo de outros órgãos e autoridades, como é o
caso do Conselho Tutelar, que em situações de maior gravidade, em que se detecta
estar o aluno criança ou adolescente em situação de risco na forma do
disposto no art.98, incisos II e/ou III da Lei nº 8.069/90, pode intervir para
fins de aplicação de medidas de proteção previstas nos arts.101 e 129 do mesmo
Diploma Legal, destinadas ao jovem e à sua família.
Também é recomendável que o processo de
discussão, elaboração e/ou adequação do regimento escolar seja estendido aos
alunos, que devem ser ouvidos acerca das dinâmicas que se pretende implementar
na escola bem como tomar efetivo conhecimento de suas normas internas, pois se o
objetivo da instituição de ensino é a formação e o preparo da pessoa para o
exercício da cidadania, é de rigor que se lhes garanta o direito de,
democraticamente, manifestar sua opinião sobre temas que irão afetá-los
diretamente em sua vida acadêmica.
Um dos pontos cruciais dessa discussão diz
respeito à definição das condutas que caracterizam, em tese, atos de
indisciplina e as sanções (ou "penas") disciplinares a elas
cominadas [nota 3].
Importante registrar que, tomando por base a
regra de hermenêutica contida no art.6º do Estatuto da Criança e do Adolescente
e seus princípios fundamentais, e ainda por analogia ao disposto no art.5º,
inciso XXXIV da Constituição Federal, que estabeleceu o princípio da
legalidade como garantia de todo cidadão contra abusos potenciais
cometidos pelo Estado (em seu sentido mais amplo), deve o regimento escolar
estabelecer, previamente, quais as condutas que importam na prática de atos
de indisciplina, bem como as sanções disciplinares a elas cominadas,
sendo ainda necessária a indicação da instância escolar (direção da escola ou
conselho escolar, por exemplo) que ficará encarregada de apreciação do caso e
aplicação da medida disciplinar respectiva (em respeito à regra contida no
art.5º, inciso LIII também da Constituição Federal).
Evidente que as sanções disciplinares previstas
não podem afrontar o princípio fundamental - e constitucional, que assegura a
todo cidadão, e em especial a crianças e adolescentes, o direito de
"acesso e PERMANÊNCIA na escola", conforme previsão expressa do
art.53, inciso I da Lei nº 8.069/90, art.3º, inciso I da Lei nº 9.394/96 e, em
especial, do art.206, inciso I da Constituição Federal [nota 4], nem poderão contemplar qualquer das hipóteses do
art.5º, inciso XLVII da Constituição Federal, onde consta a relação de
penas cuja imposição é vedada mesmo para adultos condenados pela
prática de crimes. De igual sorte, não poderão acarretar vexame ou
constrangimento ao aluno, situações que além de afrontarem direitos
constitucionais de qualquer cidadão insculpidos no art.5º, incisos III, V
e X da Constituição Federal (dentre outros), em tendo por vítima criança ou
adolescente, tornará o violador em tese responsável pela prática do crime
previsto no art.232 da Lei nº 8.069/90.
De igual sorte, ainda por respeito a princípios
estatutários e, acima de tudo, constitucionais afetos a todo cidadão
sujeito a uma sanção de qualquer natureza, a aplicação da sanção disciplinar
a aluno acusado da prática de ato de indisciplina não poderá ocorrer de forma
sumária, sob pena de violação do contido no art.5º, incisos LIV e LV da
Constituição Federal, que garantem a todos o direito ao devido
processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, mais uma
vez como forma de colocar a pessoa a salvo da arbitrariedade de
autoridades investidas do poder de punir.
Nesse contexto, é elementar que o aluno acusado
da prática da infração disciplinar, seja qual for sua idade, não apenas
tem o direito de ser formalmente cientificado de que sua conduta (que se impõe
seja devidamente descrita), caracteriza, em tese, determinado ato de
indisciplina (com remissão à norma do regimento escolar que assim o estabelece),
como também, a partir daí, deve ser a ele oportunizado exercício ao
contraditório e à ampla defesa, com a obrigatória notificação de seus
pais ou responsável, notadamente se criança ou adolescente (para assistí-lo
ou representá-lo perante a autoridade escolar), confronto direto com o acusador,
depoimento pessoal perante a autoridade processante e arrolamento/oitiva de
testemunhas do ocorrido.
Todo o procedimento disciplinar, que deve estar
devidamente previsto no regimento escolar (também por imposição do art.5º,
inciso LIV da Constituição Federal), deverá ser conduzido em sigilo,
facultando-se ao acusado a assistência de advogado.
Apenas observadas todas essas formalidades e
garantias constitucionais é que se poderá falar em aplicação de sanção
disciplinar, cuja imposição, do contrário, será nula de pleno direito,
passível de revisão judicial e mesmo sujeitando os violadores de direitos
fundamentais do aluno a sanções administrativas e judiciais, tanto na esfera
cível (inclusive com indenização por dano moral eventualmente sofrido -
ex vi do disposto no citado art.5º, inciso X da Constituição Federal),
quanto criminal, tudo a depender da natureza e extensão da infração praticada
pela autoridade responsável pela conduta abusiva e arbitrária respectiva.
Evidente também que a decisão que impõe a sanção
disciplinar precisa ser devidamente fundamentada, expondo as razões que levaram
a autoridade a entender comprovada a acusação e a rejeitar a tese de defesa
apresentada pelo aluno e seu responsável, inclusive para que possa ser
interposto eventual recurso às instâncias escolares superiores e mesmo
reclamação ou similar junto à Secretaria de Educação.
Embora as cautelas acima referidas pareçam
excessivas, devemos considerar que seu objetivo é a salvaguarda do direito do
aluno/cidadão (criança, adolescente ou adulto) contra atos abusivos/ arbitrários
da autoridade encarregada da aplicação da sanção disciplinar, que para o
exercício dessa tarefa não pode violar direitos fundamentais expressamente
relacionados na Constituição Federal e conferidos a qualquer um de
nós, consoante acima mencionado.
Também não podemos perder de vista que todo o
processo disciplinar, com a cientificação da acusação ao aluno e garantia de seu
direito ao contraditório e ampla defesa, possui uma fortíssima carga
pedagógica, pois vendo o aluno que seus direitos fundamentais foram
observados, e que foi ele tratado com respeito por parte daqueles encarregados
de definir seu destino, a sanção disciplinar eventualmente aplicada ao final por
certo será melhor assimilada, não dando margem para reclamos (em especial junto
aos pais) de "perseguição" ou "injustiça", que não raro de fato ocorrem (ou ao
menos assim acredita o aluno), e que acabam sendo fonte de revolta e
reincidência ou transgressões ainda mais graves.
Em suma, se formos justos com o aluno
acusado do ato de indisciplina, mostrando-lhe exatamente o que fez, dando-lhe a
oportunidade de fornecer sua versão dos fatos e, se comprovada a infração,
dizendo a ele porque lhe estamos aplicando a sanção disciplinar, tudo dentro de
um procedimento sério, acompanhado desde o primeiro momento pelos seus pais ou
responsável, teremos muito mais chances de alcançar os objetivos da medida
tomada, que se espera sejam eminentemente pedagógicos (e não apenas punitivos),
evitando assim a repetição de condutas semelhantes e ensinando ao jovem uma
impagável lição de cidadania, como a instituição escolar, consoante
alhures ventilado, tem a missão constitucional de ministrar.
Ao arremate, vale apenas reforçar a afirmação por
vezes efetuada que a sistemática acima referida deve ser adotada em relação a
todos os alunos, independentemente de sua idade ou nível escolar, pois a
obrigação do respeito a direitos e garantias constitucionais de parte a parte
não tem idade, sendo direito - e também dever, de todo e
qualquer cidadão, seja ele criança, adolescente ou adulto.
Notas do texto:
1 Os
chamados "atos infracionais" definidos no art.103 da Lei nº 8069/90, que devem
ser apurados pela autoridade policial e, em procedimento próprio instaurado
perante o Conselho Tutelar (no caso de crianças) ou Justiça da Infância e
Juventude (no caso de adolescentes), resultar na aplicação de medidas
específicas já relacionadas pelo mesmo Diploma Legal citado.
2 Daí
porque não há que se admitir as críticas ao Estatuto da Criança e do Adolescente
por ser supostamente uma "lei de primeiro mundo", portanto "inadequada à
realidade brasileira", pois regras como a transcrita somente têm lugar em países
de "terceiro mundo", onde se tem por hábito violar direitos fundamentais de
crianças e adolescentes, como se não fossem eles também cidadãos.
3 Deixamos
de relacioná-las expressamente pois isto deve ficar a cargo de cada regimento
escolar, que como vimos deve ser discutido e aprovado junto a toda comunidade
escolar. Relacionamos apenas os princípios a serem observados e aquilo
que não deve ocorrer quando da devida regulamentação.
4 Razão
pela qual não se admite a aplicação das sanções de suspensão pura
e simples da freqüência à escola (uma eventual suspensão deve contemplar,
obrigatoriamente, a realização de atividades paralelas, nas
próprias dependências da escola ou em outro local, desde que sob a supervisão de
educadores, de modo que o aluno não perca os conteúdos ministrados - ou mesmo
provas aplicadas - no decorrer da duração da medida), e muito menos a
expulsão ou a transferência compulsória do aluno, que em última
análise representa um "atestado de incompetência" da escola enquanto
instituição que se propõe a educar (e não apenas a ensinar) e a
formar o cidadão, tal qual dela se espera.
Sobre o autor:
Murillo José Digiácomo é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, integrante do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente (CAOPCA/MPPR). Fone: (41) 3250-4710. PABx: (41) 3250-4000. E-mail: murilojd@mp.pr.gov.br
Murillo José Digiácomo é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, integrante do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente (CAOPCA/MPPR). Fone: (41) 3250-4710. PABx: (41) 3250-4000. E-mail: murilojd@mp.pr.gov.br
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